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CAMINHO DA TENTAÇÃO (PITFALL)

Um drama policial de 1948, ao estilo noir, em preto e branco, dirigido por Andre de Toth (que dirigiu Museu de cera em 3D, com Vincent Price, em 1953). Os protagonistas são Dick Powell, Jane Wyatt (o casal Forbes), Lizabeth Scott e Raymond Burr, mas na verdade os atores desempenham de forma regular apenas, apenas as atrizes convencendo, principalmente Jane Wyat, que claramente se posiciona acima dos demais (alguns anos antes ela havia sido destaque no filme Horizonte perdido e alguns anos depois faria sucesso por muitos anos na série de TV Papai sabe tudo). Um filme baseado em livro e que tem um roteiro que nada apresenta de extraordinário, girando em torno da eterna situação da vida familiar estável (com o casamento tradicional) estremecida ou perturbada pela tentação externa (que acabou sendo denominada de femme fatale e que aqui não é exacerbada), a qual naturalmente não tem apenas uma conexão. Na minha visão das coisas, é um filme supervalorizado: há uma certa atração pelo enredo, uma ou outra situação de interesse principalmente na parte final, mas é um filme apenas razoavelmente bem conduzido e que, no final das contas, pode ser considerado mediano ou pouco acima pelos bons momentos que apresenta. Porém nada memorável e na verdade faltam aqui emoções mais entrelaçadas e intensificadas, um desenvolvimento mais denso e envolvente, bem como um aprofundamento maior dos personagens. Como passatempo, aceitável, mas não merece a fama que parece ter. 7,7

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DREAM CENÁRIO

Um filme com uma história muito diferente, totalmente anticonvencional, cujo gênero é até difícil de definir, pois na verdade é um drama, mas tem alguns toques de humor, geralmente negro, de ficção científica (será?) e é algo que vai crescendo na densidade, assumindo caminhos imprevisíveis e chocantes, embora efetivamente criativos. Passa a ser, quem sabe, uma tragédia com senso de humor (e realmente há cenas para se rir do bizarro, como a do homem mais velho com a mocinha, bastando se ver o filme com olhares de humor negro). E poderá até mesmo causar tristeza em muitos espectadores mais sensíveis. Um filme de todo modo insólito, inteligente, que fala de pessoas, conflitos de gerações, problemas familiares e estruturais, enfocando os dias de hoje e as gerações atuais, além de, claro, o politicamente correto e os conceitos dominantes, que pelo que se vê de modo algum conseguiram superar o preconceito, causando – isso sim – uma alienação e uma solidão progressivamente maiores. Entre outras contingências. Nicolas Cage – que também é produtor – está quase irreconhecível fisicamente, mas talvez até por isso apresente uma grande performance, aprofundando um personagem que a princípio seria comum, porém vai se tornando complexo à medida em que os fatos ocorrem e diferentes ações são exigidas. Atua também à altura do papel Julianne Nicholson (Togo, Mare of Easttown, Ally McBeal). Algo instigante e que se vê com o prazer da descoberta, sem perder distância da perplexidade e até da indignação. Filme estilo “de arte”, para públicos especiais. 8,6

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MAESTRO

A britânica Carey Mulligan, hoje com 38 anos, já teve várias indicações a prêmios e participou com seu reconhecido talento de vários importantes filmes, como Doce vingança, Educação, Drive, A escavação e Longe deste insensato mundo. Entretanto, aqui ela é o elemento de grande destaque do filme e apresenta uma interpretação extraordinária, em cada difícil e dramático momento, desfilando os diversos sentimentos da personagem com rara maestria. Bradley Cooper, que também produziu e dirigiu muito bem, não fica muito atrás (dá conta com competência de um papel bastante complexo), mas ela é o brilho que emoldura o filme e dá a ele todo o sentido, em todos os momentos. Mas esse brilho não é suficiente para que o filme seja perfeito em seu desenvolvimento, em seu lado emocional e na resolução das reticências de suas etapas, muitas vezes fragmentadas sem a sutileza ou delicadeza adequadas. De todo modo, um roteiro forte, com vários instantes emocionantes – pela própria música ou por cenas de Mulligan ou do casal – biográfico do famoso e polêmico Leonard Bernstein, que era sobretudo maestro/arranjador, mas também músico (pianista) e compositor e que foi o primeiro maestro americano (nascido em Massachusetts) a obter um reconhecimento mundial de regência, sabido que até a década 40 todos os grandes maestros eram estrangeiros, geralmente alemães. Ficaram famosos seus grandes concertos, sua regência por longos anos da Filarmônica de Nova Iorque e serviu de paradigma para muitos, tendo influenciado e inspirado várias gerações. Como compositor, sua obra mais famosa foi a trilha do musical West side story. O filme tem momentos brilhantes e outros até inconsistentes ou um pouco enfadonhos, mas seu foco é a vida turbulenta do maestro, na profissão, socialmente, em família e principalmente seu relacionamento com Felícia, a atriz de origem chilena, interpretada por Mulligan. O filme deixa claro sobre quem foi o grande responsável pela grande parte dos conflitos na vida do maestro, vinculado à sua conduta social e particular, vital elemento de sua personalidade (não spoiler). Além de Cooper, poderosas figuras produziram o filme, como Spielberg, Scorsese e Todd Phillips. Em resumo: uma obra de algum fôlego, de maravilhosas fotografia (notadamente nas partes em preto e branco), produção, elenco, trilha, incrível maquiagem no rosto do compositor já mais velho, alguns belos momentos (a cena da Igreja, por exemplo), mas que poderia ser mais bem desenvolvido, mais bem editado e talvez causar emoções mais afinadas e profundas. Netflix. 8,6

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A VISITA

O nome do filme já diz tudo e essa visita se refere ao retorno à cidadezinha de uma antiga moradora, que agora está milionária, não sendo difícil deduzir que tal fato causa uma grande comoção. Mas não se sabe de início a razão de após tanto tempo ela desejar rever a “aldeia”, o que será desvendado em poucos minutos de filme e o motivo vai pautar dramaticamente toda a história, com muitos acontecimentos tensos e inesperados, alguns até de difícil controle. O filme fala de nostalgia, de paixão, de vingança, de ambição e principalmente do poder de compra do dinheiro e da manipulação das pessoas. Há uma ou outra inconsistência do roteiro, mas no geral o enredo é bem desenvolvido e bem intencionado, com a mensagem (com uma ou outra surpresa) superando a realização. Além do roteiro interessante, seu maior trunfo são os protagonistas: o aclamado Anthony Quinn e a sempre maravilhosa Ingrid Bergman, aqui em um papel bem diferente dos costumeiros. Ambos grandes astros e com a mesma idade de 49 anos, ela tendo sido protagonista de grandes filmes como Quando fala o coração (1945), Interlúdio (1946) e principalmente o inesquecível Casablanca (1942); ele, que no mesmo ano faria Zorba, o grego e alguns anos depois 25ª hora e As sandálias do pescador, já tinha muitas belas obras no currículo, como O corcunda de Notre Dame (1956). Este filme de 1964 é uma co-produção dos EUA, Itália, França e Alemanha, foi indicado ao Oscar de melhor figurino em preto e branco e Bernhard Wicki (O mais longo dos dias) a Melhor diretor em Cannes. A obra original em que o filme foi baseado se chama “A visita da velha senhorae é uma peça teatral alemã. Como curiosidade, contam que William Holden estava ansioso para contracenar com Ingrid Bergman (1915-1982), mas quando Anthony Quinn (1915-2001) comprou os direitos, acabou ele mesmo assumindo o personagem. 8,6

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SALTBURN

Estamos diante de um filme para adultos, denso, chocante, mas atraente e instigante, que faz um estudo extraordinário de personagens, rompe com as convenções e vai causar bastante polêmica, principalmente por algumas cenas fortes e até incomuns. Uma obra inteligente, sarcástica, imprevisível e que aborda vários temas – tendo como pano de fundo Oxford e a própria Saltburn, que dá nome ao filme -, como classes sociais, paixão, desejo, cobiça, obsessão, alienação, futilidades, ódio, inveja, ócio, destilando crítica social e não poupando o espectador das sombras visíveis e invisíveis da vida comum e da aristocrática. Na verdade o filme vale muito mais pelo que ele não mostra e que são suas camadas mais sinistras e perversas,em um drama bem construído, roteirizado e dirigido pela excelente Emerald Fennel, a mesma de Bela vingança com Carey Mulligan, que aqui também tem um papel, embora pequeno (a despeito de ser marcante pela sua extravagância). O restante do elenco, contudo, é também composto por “feras”, como Rosamund Pike e Richard E. Grant (que, no cartaz, está ligeiramente parecido com Christopher Walken), além dos ótimos protagonistas Jacob Elordi (Euphoria) e Barry Keoghan (Os Banshees de Inisherin). Fortíssimo no tema, provocante e causador de muitas sensações, inclusive inesperadas, principalmente em sua parte final, o filme é, por todos os motivos citados, recomendado a público especial (certamente adulto) e certamente desperta muitos debates em torno de seu valor artístico e das suas pungentes mensagens. Lançamento de final de ano (2023) da Prime. 8,8

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RÉQUIEM PARA UM SONHO (REQUIEM FOR A DREAM)

Tendo em mãos um tema delicado e complexo (o mundo dos viciados em drogas), o diretor Darren Aronofsky (Cisne negro, Mãe, A baleia) conseguiu transpor para a tela um dos filmes mais realistas, crus e assustadores que o cinema já viu. Não foi uma tarefa fácil pegar um roteiro, embora bem construído, e rechear a tela com o espetáculo que esse filme é. Embora doloroso e pungente. E também graças ao desempenho magistral do trio de protagonistas – Ellen Burstyn, Jennifer Connelly e Jared Leto e mais Marlon Wayans – e a uma trilha sonora forte e alucinante (o tema principal é a magnífica e épica Lux Aeterna, de Clint Mansell). Aliás, a trilha é simplesmente avassaladora, expondo á luz o interior tumultuado dos personagens e transmitindo sentimentos absolutamente poderosos, inclusive de destruição. O som e as imagens são muitíssimo bem utilizados de forma harmônica, com ângulos diversos da ousada câmera, centenas de cortes de cena, tela dividida, tudo para dar as sensações alucinógenas da realidade alterada e fazer o público mergulhar em um mundo que não lhe pertence. A história aqui contada não faz concessões e contempla com profundidade a busca da felicidade ilusória, mas que é praticamente sem retorno e desconstrói a humanidade das pessoas, retirando-lhes a identidade, o próprio rosto. O filme inclusive faz um paralelo muito interessante entre a velhice e a juventude, ambos os casos tendo como tema comum o próprio vício. E os limite insanos vão se repetindo e é um turbilhão que aprisiona cada vez mais. Vê-se, então, que o roteiro nada tem de cor-de-rosa e não é uma história de fácil digestão, obviamente não agradando todo tipo de público, principalmente aquele que procura filmes bonitos e de finais felizes. O filme aqui é horrível na realidade que retrata, mas nesse sentido pode muito bem servir como um libelo no combate a esse inimigo contemporâneo ou no mínimo servir como pesada advertência. E sua realização aproxima-se da obra de arte, porque sendo do ano 2000, ainda permanece intenso e vicejante como um dos filmes mais densos da história do cinema, entrando na alma do espectador e mostrando dramas psicológicos e físicos em uma transformação dura e frenética, escavando as entranhas dos personagens e explorando a degradação e o abismo, nas vertigens do desespero. Algo pungente e um trabalho de mestre, contado por meio das estações do ano, menos a primavera: e por razões óbvias não se consegue retirar do enredo o que seria a esperança, talvez o símbolo dessa estação. Direção, edição, fotografia, trilha e elenco, tudo brilha e Burstyn foi indicada a Melhor Atriz tanto no Oscar, quanto no Globo de Ouro, tendo ganho nessa categoria no Independent Spirit Awards de 2001. Esse prêmio também foi dado ao filme na categoria de Fotografia e Jennifer também foi uma das indicadas. A palavra “réquiem” vem do latim e significa “repouso ou descanso”, sendo comum no mundo da música significar aquela criada para cerimônias fúnebres ou então homenagear os mortos. Prime Vídeo. 9,5

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A QUEDA DO IMPÉRIO AMERICANO (LA CHUTE DE L’EMPIRE AMÉRICAIN)

Não confundir este filme de 2018 com O declínio do império americano, realizado pelo mesmo Denys Arcand em 1986 (e que teve como continuação As invasões bárbaras, de 2003). Embora haja pontos em comum (como os ótimos Rémy Girard e Pierre Curzi e a produção canadense), trata-se de filmes bem diferentes. Este não teve tantos elogios da crítica quanto O declínio, mas também é muito bom. É um filme envolvente que mistura vários temas em um roteiro muito bem elaborado, mantendo o espectador cativo até o seu final, que não ocorre exatamente no momento e do modo que se espera, nesse sentido também não sendo uma obra convencional. O filme tem tons de comédia, um quê de leveza, de romance, de aventura e ação, ótimo ritmo e destila política e crítica social (mostrando a indiferença da elite, os percalços do capitalismo e os buracos sociais etc), denuncia manobras de fraudes e evasões fiscais, derivando igualmente para questões humanitárias, de solidariedade e de empatia, o seu final, contudo, parecendo deixar claro o seu maior propósito. É uma mistura inteligente e bem dosada de filme policial e de suspense com ironia crítica (inclusive ao mundo todo) e que demonstra a competência de seu roteirista e diretor, autor de grandes obras do cinema, como as citadas e também Amor e restos humanos, A era da inocência, Léolo, O reino da beleza. Também estrelam o filme Alexandre Landry, Louis Morissette, Maxim Roy e em papel de inesperado destaque Maripier Morin, que também é empresária e apresentadora na TV quebequense. 8,8

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O MUNDO DEPOIS DE NÓS (LEAVE THE WORLD BEHIND)

Como os tempos mudaram e o cinema está dando lugar aos serviços de streaming por assinatura, a Netflix acaba de lançar este filme (início de dezembro de 2023), privando muita gente de grandes emoções – exceto, é claro, os que possuem salas especiais de projeção ou home theaters muito bem equipados -, porque aqui o suspense é intenso e muito bem feito, em um filme bastante fora do convencional e que mereceria ser visto na telona. E é muito suspense mesmo, de provocar até agonia no espectador, tal a tensão a que o filme chega dentro de um tema que é mais do que contemporâneo: o medo do fim do mundo ou pelo menos da destruição da paz que ainda reina, com o avanço cibernético/tecnológico e o poder bélico desenfreado e colérico dos poderosos, a despeito dos séculos e da suposta evolução da humanidade. O filme vai nos conduzindo por caminhos que parecem sombrios (porque fatos estranhos vão acontecendo, sugerindo aos poucos que a normalidade foi quebrada) e que não conseguimos prever. E como é muito bem dirigido e montado e conta com um elenco competente, ficamos presos à história, tensos, interessados e sem a mínima noção do que virá pela frente. Esse é um grande mérito: esse mistério criado pelo roteiro, com o espectador ignorando os fatos e os desvendando junto com os personagens. Certamente não é um filme popular – embora possa agradar pelo seu aspecto apocalíptico – e se encaixa naquele tipo de obra (adaptada de livro) que talvez deseje mais fazer refletir, do que explicar fatos, aliás, até pelas reticências do final, parece ser algo mais adequado à plataforma Mubi do que à Netflix, se é que fica fácil entender assim. E tanto é polêmico, que os conceitos na internet simplesmente variam de uma até cinco estrelas. Mas é algo singular e o próprio cartaz do filme já indica isso: belo, chamativo, mas totalmente integrado ao contexto. Todos atuam muito bem, sob a batuta afinada do diretor Sam Esmail (roteirista da série Mr Robot), principalmente Júlia Roberts e Mahershala Ali (também tem Ethan Hawke, Myha´la e uma ponta de Kevin Bacon, além do casal de filhos) e a cena final é inteligente e irônica (também sujeita a discussões), fechando com méritos o insólito roteiro e que vale a visita só por fugir do padrão e por deixar vários e importantes temas (e que assustam !) pairando no ar de um futuro incerto. 8,9

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UM PASSE DE MÁGICA (MAGIA NEGRA – MAGIC)

Este drama com suspense de 1978 está também classificado dentro do gênero terror psicológico, porque são intensas as cenas que mostram o progressivamente denso e sinistro relacionamento do protagonista com seu parceiro de palco e, via de consequência, com tudo e todos ao redor. Essa relação é o ponto central do filme e o nutre, tornando-o atraente e instigante, sem que se possa prever precisamente para que caminhos o enredo derivará. Interessante também observar o grande Anthony Hopkins aos 41 anos e já com alguns filmes feitos, mas com a parte mais significativa do currículo ainda por vir (Silêncio dos inocentes, Meu pai), assim como a musa Ann-Margret aos 37 anos e como sempre ótima atriz (e bonita – Ânsia de amar), também integrando o elenco Burgess Meredith, na época com 71 anos (inesquecível em Rocky). Não para todos os gostos, mas um filme original e que prende a atenção – embora só se mantenha e justifique por Hopkins -, dirigido por Richard Attenborough, lorde do Império Britânico, então com 55 anos e que participou como ator do filme Jurassic Park (tendo ganho dois Oscars por Gandhi). 8,4

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CENA DE ACUSADOS (UM TRAIDOR ENTRE NÓS – MARIE- OCTOBRE)

Muitos anos após a Segunda Guerra, antigos ex-combatentes da resistência francesa se reúnem, tanto homenageando o líder Castille, que na época foi morto pelos nazistas, quanto rememorando os fatos que indicam ter havido um traidor entre eles e que os denunciou para a Gestapo. Assim, uma reunião aparentemente resgatadora dos tempos difíceis e de memória e amizade, vai se transformar em uma expiação de pecados e na busca da verdade, em novo e inesperado contexto. Este filme de 1959 tem uma bela fotografia e um ótimo ritmo, além de alguns detalhes muito interessantes no roteiro, que vai aumentando a tensão entre os personagens, na medida em que cada um se expõe e sua personalidade se destaca, revelando histórias que são aceitas ou discutidas, em razão de sua verossimilhança. As desconfianças surgem, se estabelecem e em meio à exposição de fatos e álibis, surgem as suspeitas e o espectador vai ouvindo as diversas versões – pois todos são colocados contra a parede e têm a chance de narrar os fatos segundo seu próprio ponto de vista – e construindo suas suposições, como em um jogo de detetive. Tudo poderia ser totalmente harmônico, se não fosse uma grave falha no roteiro (indo para a parte final) e que o compromete parcialmente: em tese poderia até passar despercebido o fato, mas quem estiver sintonizado perceberá e se incomodará, porque é algo bastante grave, causando uma ruptura argumentativa. Trata-se do resultado da apuração de votos, que jamais poderia ter sido o apontado, impossível dentro da lógica: e a partir dali o absurdo é aceito como um fato normal, quebrando em parte o fluente desenvolvimento da história. Mas, seja como for, como o conjunto todo (inclusive o elenco) é agradável e bem construído, pode-se até passar por cima da falha, em nome da qualidade geral, e no final das contas o filme acaba sendo um bom entretenimento. Dirigido por Julien Duvivier e estrelado por Danielle Darrieux e Lino Ventura, entre outros. 8,2

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UM SONHO DE LIBERDADE (THE SHAWSHANK REDEMPTION)

Este é um filme de 1994 e que integra quase todas as listas dos melhores filmes do cinema de todos os tempos. E sempre muitíssimo bem colocado. E, de fato, é um filme singular, um filmaço e que não envelhece, permanecendo, portanto, como um dos clássicos, em que todos os elementos interagem e se harmonizam a favor de um todo repleto de significados. É uma combinação muito feliz de diversos elementos, que fluem com riqueza e perfeição, desenrolando um roteiro mais do que interessante, que entretém e instiga e que trará também alguns fatos inesperados, em uma história sobre eventos reais da década de 40. O ser humano aparece com suas diversas faces, em ambiente de sobrevivência e grandes dramas – e algumas amizades – se desenrolam física e psicologicamente naquele local confinado e opressor. Além disso, o filme trata de tenacidade, resiliência (e o uso da inteligência contra um sistema cruel e injusto), esperança e, como o próprio título original diz, redenção, valores humanos essenciais. Além do maravilhoso roteiro adaptado de um conto de Stephen King por Frank Darabont (O nevoeiro, À espera de um milagre), que o dirigiu com grande estilo e competência, a obra apresenta também alta qualidade na montagem, som, fotografia, trilha sonora e também são magníficas as interpretações de Morgan Freeman e Tim Robbins, que descortinam personagens inesquecíveis além deles, atuam também de forma marcante Bob Gunton (o diretor do presídio), Clancy Brown (o guarda de confiança) e Gil Bellows (de Ally McBeal). O filme concorreu a sete Oscars e não ganhou nenhum: era o ano de Forrest Gump, que papou todos, praticamente concorrendo nas mesmas categorias (observação: era também o ano de Pulp Fiction, que só venceu em roteiro original). Mas o fato é que este filme de início foi um fracasso de bilheteria, mas com o tempo foi crescendo no gosto popular e da crítica e acabou assumindo um papel cada vez mais importante na história do cinema, até se tornar absolutamente essencial. 10,0

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ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES

Uma obra de fôlego do grande Martin Scorsese (que faz uma ponta no final do filme), não apenas por ser um longa-metragem (com quase 3 horas e meia de duração), mas principalmente pela abordagem aprofundada que faz do difícil tema, valorizando inclusive a obra de mesmo nome em que se baseou: o best seller de David Grann. A temática já foi bastante enfocada no cinema, mas não com a extensão e riqueza que este filme apresenta: a exploração dos índios pelos brancos, mas aqui tudo elevado à potência da perversidade, sordidez e violência, agravados por atos orquestrados de maldade continuada, para extirpar patrimônio e no fim das contas buscar simplesmente o genocídio dos Osages, índios que enriqueceram com o petróleo encontrado em suas terras, nas primeiras décadas do século 20 (em Oklahoma). A cobiça, a corrupção desenfreada, as cores da transformação do Velho Oeste em Civilização, com todos os percalços das mudanças e da chegada da modernidade, um conjunto de fatos que se misturam para dar ao filme um colorido especial, mas também um ar dramático, de suspense e mesmo contornos de terror, quando praticamente se chega a um ponto sem esperança, diante da prática do mal sem o menor vislumbre de algo que possa controlá-lo. Até que algo aparece. Nesse sentido, percebe-se nitidamente – e mais uma vez – que o direito e a lei, a ordem e a justiça consistem na única resposta possível (ou réstia de esperança) do homem contra o caos e a violência desenfreada (a barbárie). Além da excelente direção, o elenco é de peso, despontando agora juntos – e com maravilhosas atuações – dois parceiros constantes de Scorsese: Leonardo Di Caprio e Robert De Niro. Também se destacam os ótimos desempenhos de Lily Gladstone e Jesse Plemons (além das pontas de John Lithgow e Brandan Fraser). Um filme forte e perturbador, por se basear em fatos reais, mas que talvez pudesse explorar de modo mais intenso algumas emoções e se tornar ainda mais apaixonante e arrebatador. 8,8

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O SOL É PARA TODOS

Este é um filme para ser chamado de Clássico. Não porque foi eleito um dos favoritos de todos os tempos e o personagem principal interpretado por Gregory Peck –o advogado Atticus Finch- escolhido como o maior herói americano pelo American Film Institute em 2003, mas sim pelos elementos humanitários que contém e por sua qualidade. O filme é baseado em livro de Harper Lee (vencedor do Prêmio Pulitzer em 1961), abordando fatos de 1932 em pequena e conservadora cidade americana (Maycomb, Alabama). Há dois focos principais de interesse no filme: a infância (e a educação das crianças segundo regras éticas), seus heróis, mistérios e fantasmas e a advocacia de Atticus (rigorosamente íntegro), subitamente às voltas com um caso difícil, de julgamento pelo júri, e que praticamente desafia toda a cidade, pelo preconceito. A narradora da história é, já adulta e em off, a pequena Scout (quando tinha 6 anos), contando os fatos sob a sua perspectiva em um clima de permanente mistério, graças à direção de arte, fotografia e trilha sonora, assim como a excelente direção de Robert Mulligan (Houve uma vez um verão, Quando setembro vier, A inocente face do terror…). Esse clima que predomina inclui as fantasias de infância (curiosidade, medo, aventuras em um mundo mágico e criativo) e o misterioso vizinho Boo, que terá um papel importante e inesquecível no final do filme. De outro lado, o caso que abalou a cidade tem início e prossegue perante o tribunal do júri, com Atticus pautando-se sempre por uma conduta inabalável em defesa de suas convicções e do que acha justo, o que faz também na vida familiar, nos belos e edificantes diálogos com seus filhos. Em um deles, diz à filha que só se pode saber como alguém se sente, colocando-se no lugar dessa pessoa. No final há cenas notáveis e o fecho do filme é um primor, em todos os sentidos. Gregory Peck ganhou por seu papel o Oscar de Melhor ator em 1963, tendo o filme também ganho os de Melhor roteiro adaptado e Melhor direção de arte em preto e branco. Como curiosidade, foi o filme de estreia no cinema do ator Robert Duvall. O título original “To kill a mockingbird” ou “Como matar um rouxinol” -ou uma sabiá ou uma cotovia, conforme o tradutor- é esclarecido em uma das cenas e a explicação tem um significado belíssimo, que harmoniza com todo o sentido e o sentimento da obra. Tanto em razão do romance, quanto do próprio filme, Atticus Finch, pelo modelo de integridade, passou a ser na história literária americana, segundo um crítico, a imagem ficcional mais duradoura do heroísmo racial. 9,5

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UM BELO VERÃO (LA BELLE SAISON/SUMMERTIME)

Este filme francês de 2015 não poderia se referir aos tempos atuais, porque perderia o sentido. O mundo está em uma fase libertária, de reafirmação das escolhas em todas as áreas do relacionamento humano e da afetividade, sendo hoje fato trivial e absolutamente comum o homossexualismo que a história retrata, como tão pecaminoso para os anos 70. Onde se, na capital Paris, efervesciam movimentos de liberdade e revolucionários, pregando a liberdade da mulher e a  igualdade dos sexos, no interior o tradicionalismo ainda imperava e a esse conservadorismo repugnava tudo o que era novo, ainda mais em assuntos ofensivos à família (leia-se “sexo”). O dever dos filhos era manter vivos os negócios dos pais e a sociedade observava com rigor o cumprimento da ordem natural das coisas: os moços casarem com as moças, frequentarem a Igreja, terem filhos e assim caminhava a humanidade. Este filme franco-belga escrito e dirigido com muita competência e sensibilidade por Catherine Corsini explora o intenso embate e contraste entre duas forças poderosas: a tradição e a família e o amor proibido/em pecado. Como romper tais amarras? Seria possível fugir sem culpa do tema vinculante “meu lugar é aqui”? Um drama que discute com rara beleza e sobriedade o dilema da opressão e da escolha e com isso conta com elementos primordiais, que são as duas protagonistas, Cécile De France (consagrada atriz francesa) e Izïa Higelin, com o apoio forte de Noémie Lvovsky, no papel materno. Não é um filme erótico apesar de cenas de nudez e algumas mais sensíveis e sim um drama que discute a liberdade de escolha, a liberdade feminina e a libertação de costumes seculares. No fim das contas, é um filme de amor e que mostra que esse sentimento superlativo, indefinível, insuperável e universal independe de idade, de época e se manifesta de forma indomável, com aroma de infinitude e causa tanto grandes prazeres, quanto formidáveis dores. No final, o filme apresenta uma bela reticência.Produção que participou do Festival Varilux de 2016. 8,6

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LAMB

Este é um filme estranho, mas – também por isso – extremamente original e bem feito e que fiquem desde logo claros dois aspectos: qualquer comentário mais a fundo ou conhecimento prévio dos fatos pode estragar algumas importantes surpresas (portanto, recomenda-se não ler qualquer material a respeito do filme antes de vê-lo) e se trata de um filme “de arte”, o que significa que não será apreciado por muitas pessoas. Aliás, na internet a cotação do filme varia de uma a cinco estrelas, tendo sido premiado em Cannes em 2021, na mostra paralela Un certain regard (Prix de l’originalité). O gênero do filme é drama com suspense e fantasia, este último fator já sendo uma dica para o espectador ficar preparado para qualquer coisa, mesmo bizarra. Alguns, entretanto, classificam o filme como um suspense/terror folclórico, inclusive por manusear com elementos ancestrais do ser humano, provocando instintos primitivos. O local da história é lindíssimo e a fotografia o valoriza à altura: um local remoto da Islândia, onde se cria basicamente ovelhas, próximo a um rio ativo e entre belas e gélidas montanhas. O elenco é pequeno mas ótimo, com mais uma segura e essencial atuação da versátil atriz sueca Noomi Rapace (Os homens que não amavam as mulheres). Além disso, em harmonia com a intensa trilha sonora, o som do filme (e segundo os mais entendidos a «edição/mixagem de som») é fator de grande importância, embora o grande destaque seja a direção (e edição): apesar de ser praticamente um estreante, o cineasta e roteirista islandês Valdimar Jóhannsson consegue transpor de maneira brilhante para a tela um roteiro difícil e que exige muita delicadeza no tocante a alguns aspectos. E o faz inclusive com grande habilidade de filmar os animais (no começo do filme esse fato já aparece com destaque), incluindo o cão de guarda da fazenda. Mas o grande mérito do diretor, além de conseguir passar de forma clara os diversos sentimentos dos personagens, é forjar um suspense muito difícil de realizar. O filme já começa desse modo e permanece com uma tensão latente durante todo o enredo. Contudo, nos últimos minutos é construído um suspense extraordinário e quase insuportável, como se o diretor tivesse tido aulas com os mestres no assunto, como, por exemplo, Alfred Hitchcock, que praticava o dito de que «o medo é maior por coisas que não se vê e que ativam nossa imaginação». Este é um filme lento, porém certamente perturbador, com muitas reticências e imagens, de cujo roteiro se pode extrair muita coisa, o que, aliás, é rotineiro em filmes não convencionais. Há diversas observações muito sagazes e que podem ser pesquisadas na internet depois de ver o filme, como, por exemplo, a observação de alguém sobre a importância (para a lacuna que o final deixa) de Ada ter aprendido o caminho de voltar para casa, guiada pelo barulho do rio! Mas o que se percebe e o que se sente do que é evidente, já tornam a experiência perfeitamente válida e conforme o gosto realmente um grande prazer cinematográfico. 9,0

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ANATOMIA DE UMA QUEDA (ANATOMIE D´UNE CHUTE)

Drama francês do gênero policial-suspense, vencedor da Palma de Ouro em Cannes de 2023. Não é um filme popular, tem um andamento bem ao estilo dos filmes escandinavos (aliás, os fatos se passam nas belíssimas paisagens de neve próximas a Grenoble), lento e típico dos chamados “filmes de arte”, mas com um roteiro extremamente denso e bem construído, trazendo uma história que pouco a pouco vai envolvendo e instigando o espectador, pois ao mesmo tempo em que os fatos são investigados e as intimidades reveladas (inclusive em cenas de tribunal), a narrativa vai se construindo com muito mistério, alastrando as dúvidas e principalmente intensificando a grande questão: houve ou não a ocorrência de um crime? Na verdade, o título do filme se refere à anatomia de um fato específico, mas isso também ocorre em relação a um casamento, com todas as decorrências possíveis, pessoais, profissionais e existenciais.  A direção é extremamente lúcida e sensível da excelente Justine Triet e o elenco é todo ótimo – inclusive o menino, interpretado por Milo Machado Grande -, com destaque para a magistral performance da atriz Sandra Hùller, que apresenta um desempenho que também amplia o mistério em torno da verdade dos fatos, criando uma personagem tão humana, quando fascinante e multifacetada. A história envolve um casal de escritores, ela alemã e ele francês, com um filho que sofreu um grave acidente. E assim acompanhamos dores, ressentimentos, dilemas, culpas, cobranças, traições, um redemoinho de fatos e emoções, com reflexos talvez os menos desejados ou previsíveis. O filme participou do Festival Varilux 2023 e tem uma curiosidade quase inacreditável: o singular cachorro da raça Border Collie que participa em muitas cenas do filme (Messi) venceu o “Palm Dog”, que é uma competição não oficial do Festival de Cannes e que premia atuações animais em filmes. Isso à parte, um belíssimo filme e que parece só alcançar sua placidez na cena final, tão singela, quanto significativa. 9,0

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O PAGADOR DE PROMESSAS

Filme baseado na obra do grande dramaturgo Dias Gomes (O bem amado, Roque Santeiro etc), escrito e dirigido por Anselmo Duarte (também ator e roteirista) e que apresenta um elenco de nomes que ficaram consagrados no cinema e na TV, destacando-se: Leonardo Villar (ótima performance), Glória Menezes (quase irreconhecível em seu primeiro filme, aos 28 anos, já tendo iniciado na televisão), Dionísio Azevedo, Geraldo Del Rey, Norma Bengell, Othon Bastos e Antonio Pitanga. Em preto e branco e com um contundente roteiro de crítica social, até os dias de hoje permanece com bastante atualidade, porém acabou ficou famoso mesmo pelos prêmios que ganhou (Cartagena, São Francisco…), para os quais foi indicado (Oscar de Melhor filme estrangeiro em 1963), mas principalmente porque foi o único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, o que ocorreu no mesmo ano da produção, em 1962. E realmente a láurea foi merecida, porque é uma bela e bem construída história, repleta de conteúdo social e político, voltado mais para a instituição da Igreja, mas alfinetando com ênfase também a imprensa, os políticos, a polícia e até mesmo o próprio povo e sua ignorância, com a corrupção servindo de papel de embrulho. A partir de um fato de um homem simples (de uma promessa) e da inflexibilidade da igreja católica para agregar credos diversos dos seus, uma comoção social acaba ocorrendo ao redor das escadarias da Igreja Santa Bárbara (que não é o nome real da que aparece no filme), com um redemoinho incontrolável de fatos que se desdobram em consequências a princípio inimagináveis e que colocam a perigo valores, casamento e até a própria vida, sendo fato que a manipulação não é tarefa difícil quando bem orquestrada e quando encontra vítimas de fácil acesso, ficando transparente que alguém pode ser santo ou demônio, apenas dependendo de quem seja o observador (ou interlocutor): e isso é mostrado de um modo sensível, inteligente e criativo, sem perder o ritmo e explorando com muita energia e felicidade os costumes baianos, sua religiosidade diversificada e dança (capoeira), seu comércio, sua cultura geral, enfim. Importante saber que no sincretismo religioso baiano (fusão de práticas religiosas) Iansã é associada geralmente a Santa Bárbara, que foi morta pelo pai quando se converteu ao cristianismo (após, o pai foi vítima de um raio na cabeça). O filme é bem contundente quando mostra a disseminação da ignorância pela própria Igreja, para defender interesses corporativos, colocando seus propósitos políticos muito acima de quaisquer patamares humanitários (sob a desculpa de praticar a “tolerância cristâ”…). E há uma cena especialmente jocosa, que acontece enquanto a bandinha passa tocando Cisne branco, a canção dos marinheiros. Pelos amplos significados, o final é genial, agregando fatos e sentimentos diversificados, havendo uma estranha sensação (e um vazio) quando a câmera se afasta e vemos de outra perspectiva (mas sem recuperar a esperança) a imagem da incongruência, do desperdício e do desalento. 9,0

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AINDA TEMOS O AMANHÃ (C´È ANCORA DOMANI)

Um filme a mais, do Festival do Cinema Italiano no Brasil, 2023. Quem pensar nas temáticas do Neorrealismo Italiano vai identificar este filme, que se passa em 1946 (ano em que os americanos ainda tinham algumas tropas na Itália), em um pós-guerra de renascimento e de muita pobreza. A miséria do povo romano aqui também é mostrada, embora não com tanta ênfase como, por exemplo, em Ladrões de bicicleta, mas com intuito semelhante, embora neste caso o realismo fique bem mais “teatral”, um pouco atenuado pela belíssima fotografia em preto e branco. Mas isso de modo algum desvaloriza este surpreendente e emocionante filme, que em momento algum perde seu propósito e principalmente sua qualidade. Ao contrário, à medida em que vamos acompanhando o roteiro, vamos nos envolvendo com os fatos e com todos os personagens, até que as cenas finais reservam momentos de grande expectativa e emoção e ficamos definitivamente envolvidos e até extasiados com os desdobramentos da história. Excelente a direção de Paola Cortellesi, que também atua, muitíssimo bem, no papel da maravilhosa Délia. Aliás, harmonizando com todos os elementos, o elenco é todo espetacular: Valério Mastandrea (tão bom, que nos deixa permanentemente indignados com seu personagem), Romana Maggiora (bela e forte), Emanuela Fanelli (competente e segura) e outros, inclusive as crianças. Um dos grandes méritos do filme é não transformar a história em drama puro, mas pontificar os instantes sérios com outros de comédia (humor, porém, inteligente, sagaz e irônico), que servem de alívio para a aridez dos temas (a cena do velório é realmente muito engraçada, tanto pela estranha no ambiente, quando nos detalhes da vida real: o mal amado se transformando em santo depois que morre). Os fatos são tão bem retratados, notadamente envolvendo a submissão da mulher, o autoritarismo do marido troglodita e violento, que em muitas cenas sentimos um verdadeiro mal-estar, um desconforto profundo em presenciar coisas tão absurdas (o filme mostra em cores vivas o patriarcado e tangencia outros aspectos relevantes da época, como o salário menor das mulheres mesmo em relação aos homens menos capacitados, a difícil saída para outro rumo que não o de figura decorativa no lar etc). Felizmente – e por bom gosto – a feliz e sensível criatividade substituiu as cenas que seriam mais explícitas da violência doméstica por outros totalmente inusitadas e líricas/nostálgicas (sendo até divertidas), embora não deixem de transmitir a mensagem aguda e correta. São várias lições que se apresentam, até mesmo de que muitas vezes é o opressor quem sofre com sua própria doença, pois o oprimido aprende a ser legitimamente feliz (já que se contenta com que tem e que não raro é o fundamental: filhos, família, um lugar para morar). Há muitos momentos de música, alguns de nostalgia, em um filme que nos transporta por caminhos realistas, mas com a magia da tenacidade simbolizada pela poesia e que na verdade traz alento. A época era de liberdade tolhida e na pessoa da filha se materializa o inconformismo, mas a esperança aparece realmente enclausurada. Um filme inteligente, sensível, que habilmente cria um belo suspense em seus momentos finais, fazendo o espectador passar a torcer pelo destino de personagens determinados, até que tudo culmina em um momento inesperado e que, com a conjugação de imagens, texto e som, nos deixa com real e intensa emoção, passando a constituir certamente a obra-prima da diretora e um dos instantes sublimes do cinema. 9,6

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MAIGRET E A JOVEM MORTA

Georges Simenon foi um escritor belga nascido no início do século 20 (falecido aos 86 anos na Suiça) e extremamente prolífico, sendo autor de mais de 500 romances, novelas, contos etc, inclusive sob vários pseudônimos. E criou um dos detetives mais famosos da literatura: o também belga Inspetor Maigret, que foi imortalizado em 75 novelas e 28 contos. Este filme acompanha um caso do já Comissário Jules Maigret, na França dos anos 30/40 (no estilo pode-se dizer noir), interpretado pelo também imortal Gerard Depardieu, certamente um dos maiores atores franceses de todos os tempos (Corações loucos, A mulher do lado, Vatel, Jean de Florette, 1492, Os miseráveis, Asterix, Cyrano de Bergerac etc etc). Ele parece cansado e melancólico, não caber mais no imenso corpo, o qual acena com um mal súbito a qualquer momento (e faz o personagem também velho e doente)…mas é Depardieu. E por isso carrega o filme com o talento de sempre e imprimindo ao personagem as cores que melhor entende caberem e que se fisicamente soam diferentes dos livros, emocionalmente têm a empatia adequada e evidenciada. O filme, de 2022, tem no começo um crime e junto com as investigações do Comissário e as pistas, que pouco a pouco vão se acumulando, vamos, interessandos, acompanhando os fatos e também tentando montar a solução para o mistério. Há no roteiro e no personagem algumas sutilezas, principalmente no olhar do Comissário sobre o entorno, a Paris mudada quanto aos moradores da miséria atual, nas lembranças da filha em nenhum momento explorada em palavras e até em algumas tiradas interessantes com aquele senso de humor de quem nunca ri, como, por exemplo, quando perguntam se ele tem animais em casa, Maigret responde que “só no meu prato”. Eis o ator enobrecendo o personagem O roteiro não é complexo e com certeza o defeito atribuído ao filme é o seu lento desenvolvimento, seu ritmo que pode se tornar às vezes cansativo. Mas assim por opção do diretor, que decidiu enfatizar as percepções do protagonista em relação às coisas ao seu redor de um modo sensível e incomumente terno, porém com algumas reticências. Esse diretor é o consagrado ator, roteirista, autor de quadrinhos e também cineasta Patrice Leconte (O marido da cabeleireira, Um homem meio esquisito), que optou por um estilo que torna o filme diferente, talvez não sendo de agrado para todos os gostos ou para qualquer momento. Porém é uma visão a ser respeitada e uma viagem que vale a pena, mesclada de sentimentos com história de mistério e suspense policial. Prime Vídeo. 8,4

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O PRÓPRIO ENTERRO (THE BURIAL)

Ah, esses “tradutores de títulos de filmes!! Não poderiam deixar simplesmente o título original “O enterro”, que é o mais apropriado? Têm que tratar o público como idiota e ignorante? Mas deixemos de lado esse pessoal…Este é um drama em tons leves, dirigido pela praticamente desconhecida Maggie Betts, porém com alguns momentos intensos em razão de sua temática (principalmente nos “embates” jurídicos). O roteiro lembra o de diversas produções, portanto não sendo exatamente original. Entretanto, existem alguns diferenciais na história e mesmo nos momentos de tribunal, que nos prendem à história e nos mantêm interessados até o final, quando descobrimos que o enredo se baseia em fatos reais: (atenção: adiante pode ser um “spoiler”) como de costume, com os créditos finais aparecem algumas imagens e o destino das coisas e dos personagens. Esse “spoiler” que não é na verdade um estraga-prazeres na intenção, destina-se apenas a tornar ainda mais saborosa a degustação do filme, antecipando um aspecto que provavelmente já é previamente conhecido de que vai ver o filme. Entretanto, não são somente alguns elementos dessa história algo batida na essência que tornam o filme muito bom: o fato mais relevante é a performance do elenco – e, consequentemente, a direção de atores/atrizes. Tommy Lee Jones faz um papel bem diferente do seu trivial e muito bem (dono de funerárias, eis a razão do título), na verdade pode-se dizer que está impecável. Mas as atrizes que fazem a esposa dele, a esposa do protagonista, alguns advogados, Bill Camp (Loewen) e mesmo um ou outro personagem que participa do filme brevemente, todos formam uma bela harmonia interpretativa. Todavia, ninguém brilha com a intensidade do ator Jamie Foxx, que dá uma aula de interpretação, tendo inclusive grandes chances de ser indicado no Oscar 2024. A atuação dele é realmente memorável. Poderão alguns dizer que ele é “irmão” e, portanto, mais afeito às “lides” afins…para estes, entretanto, recomendo ver outros filmes em que Jamie atua, como “Ray”, “Django livre” e “Colateral”, por exemplo, e comparar os desempenhos, para chegar à conclusão sobre o grande ator de que se trata. Em suma, um filme que vale a pena e que inclusive em alguns momentos pode se tornar imprevisível, acentuando o suspense. Prime Vídeo. 8,8