CIDADÃO KANE
Este é um filme realmente grandioso, ainda mais para o ano de 1941, tendo sido um projeto audacioso e inovador de Orson Welles, que construiu também um roteiro original e muito bem desenvolvido, valorizado de um modo marcante e definitivo por diversas inovações de técnica cinematográfica (profundidade de campo, ângulos e movimentação de câmera, os planos iniciais com a janela de Xanadu em evidência em todos eles…), pela cenografia e pela fotografia belíssima (em preto e branco), com predominância de um clima noir. Quanto à técnica cinematográfica e que perdura durante todo o filme, vale inclusive a pena o fã de cinema procurar material a respeito, porque vai se surpreender e se encantar. O filme começa e termina de forma espetacular: inicia com a apresentação da exótica e monumental Xanadu e com a morte do personagem que será o seu tema principal, o megalomaníaco milionário e dono de um império jornalístico, Charles Foster Kane, e finda com a impactante imagem dos objetos da mansão embalados e a explicação para o mistério que perdura durante todo o filme e que ninguém parece saber responder: o significado da palavra rosebud, que é dita no meio do filme e no instante inicial, em que o protagonista morre, deixando cair de suas mãos o peso de cristal transparente, reproduzindo em seu interior uma paisagem de inverno, com a neve caindo. Aliás, a solução do mistério é tão espetacular quanto a cena que o revela, no final do filme, quando ainda contemplamos a majestade vazia de Xanadu. O ritmo do filme é contagiante, de narrativa jornalística, e há cenas impressionantes, destacando a grandiosidade do personagem e também o seu vazio (a cena do ambiente com a lareira gigante é bastante eloquente nesse sentido). A direção e a interpretação de Welles –que também co-roteirizou o filme- são notáveis e é realmente uma história impactante, tanto pelo conteúdo, quanto pela forma. Pode-se dizer que o defeito do filme e que felizmente aparece pouco e mais em sua parte final (e que é também uma de suas virtudes) é a maquiagem, que em uma ou outra cena é perceptivelmente falha: entretanto, os recursos da época provavelmente não permitiam que fosse melhor. Além de Welles, de mais conhecidos, atuam no filme Joseph Cotten (ator americano que participou de meia centena de filmes) e Agnes Moorehead (que viria a ser Endora, a mãe de Samantha Stevens na série A feiticeira, na TV), sendo o filme de estreia de ambos no cinema. Só parece abaixo da média, em relação a todo o elenco, Dorothy Comingore, de atuação apenas razoável como Susan Alexander Kane. O filme na verdade conta, de uma forma não linear, a história do magnata da imprensa Charles Kane, sendo um libelo contra a corrupção do poder (no caso midiático), com muitos flashbacks e apresentando uma excelente montagem, por todo esse conjunto sendo aclamado pela crítica como um dos melhores filmes da história do cinema. De fato, a obra apresenta muitas inovações cinematográficas em sua estrutura narrativa, na própria linguagem cinematográfica e a técnica que aperfeiçoa o já conhecido e apresenta novidades acabou influenciando dezenas de diretores e de filmes a partir dali. Orson Welles declarou que pretendia focar o filme no estudo do personagem e não propriamente na ação, denominando sua ideia central como “a história de um fracasso”. E com isso realizou o seu primeiro trabalho como diretor e tinha apenas 25 anos! Idade suficiente para ter tamanho espírito crítico em relação à realidade que o rodeava, relativa ao poder manipulador da mídia (leia-se William Hearst, conforme adiante se verá). Conta a história que a liberdade que Orson Welles teve para realizar o filme e ter o completo domínio da obra veio do fato real ocorrido três anos antes, quando, durante a apresentação de uma peça radiofônica que produziu, chamada “Guerra dos mundos”, simplesmente Welles transmitiu pela rádio os fatos de uma invasão extraterrestre, como se a mesma estivesse realmente acontecendo (com citações de ataques armados por marcianos a New Jersey, New York etc, como se fosse um notícia jornalística de verdade), e com isso gerou desespero e pânico real em milhares de espectadores! Assim, acabou ganhando “carta branca” para fazer o filme que desejasse. É certo que o personagem de Kane foi inspirado no milionário William Randolph Hearst, assim como a magnífica Xanadu se inspirou na colossal mansão Hearst Castle, havendo ainda outras referências que o filme contêm, da realidade envolvendo Hearst (como ter mandado erigir uma construção para a amada). E é também verdade que o empresário ficou tão irritado com esses fatos (e com o roteiro do filme, que escancarava e blasfemava contra a sua realidade), que tentou impedir o lançamento do filme, primeiro tentando inutilmente comprar o rolo original do filme por uma fortuna e, depois, acusando Welles de comunista, algo muito grave na época. O filme ganhou apenas o Oscar de Melhor roteiro, embora tenha concorrido em nove categorias, tendo vindo apenas mais tarde o seu reconhecimento histórico e sua importância para a sétima arte, passando então a constar entre os primeiros lugares em todas as listas dos melhores filmes da história do cinema. Por fim: pelo já visto, constata-se que não é verdade que o filme deixa dúvidas sobre o real significado da palavra “rosebud”, não tendo sentido toda polêmica que o fato rendeu e ainda rende. Ao contrário, no final do filme tal significado é perfeitamente esclarecido (sem spoiler sobre de que forma), podendo ser simbolizado como a busca da pureza perdida – aqui incluído o amor materno e a infância. Diante do contexto todo, talvez até tenha até sido proposital dar significado à oposição da neve do início e do fogo no final, mas, de todo modo, nenhum mistério permaneceu depois da fumaça negra saindo dramaticamente pela chaminé elevada à altura do céu cinzento! 9,0