NARCISO EM FÉRIAS
A prisão acaba com toda a vaidade humana. Na verdade, com toda a dignidade de qualquer cidadão. Ainda mais, quando ele desconhece os motivos pelos quais está sendo preso (como no livro de Kafka), fato não incomum nos regimes totalitários e frequente em algumas épocas da história do Brasil. Uma delas foi a da ditadura militar e aqui Caetano Veloso confirma o fato e lhe dá cores, de modo eloquente, mas emocionado, em um documentário produzido por sua mulher Paula Lavigne e dirigido por Ricardo Callil e Renato Terra. De uma forma despojada e corajosa (embora também dolorosa), relata com todas as cores como foi sua prisão aos 26 anos, em 1968/1969, quando, juntamente com Gilberto Gil, foi levado de sua casa para um suposto interrogatório e só voltou quase um mês depois completamente transtornado pela crueldade do terror psicológico por que passou. O filme é apenas Caetano na frente da câmera, com sua memória, seu jeito peculiar e sua inteligência criativa, levando a público o que ficou registrado em arquivos sigilosos e que apenas há algum tempo foi descoberto (depoimentos), além de todo o contexto em torno dos apontamentos, com imagens realmente poderosas e emocionantes. Além de várias referências históricas, temos a oportunidade de avaliar, na pessoa de um intelectual, instantes tão impactantes, quanto emocionantes, a desconstituição psicológica de um ser humano (razão do título do documentário, um Narciso privado do espelho): o próprio Caetano é tomado muitas vezes por intensas emoções e em determinado momento pede inclusive para serem interrompidas as filmagens. O seu caso particular permite inclusive que imaginemos o que ocorreu com os presos tidos como verdadeiramente perigosos (armados, por exemplo), porque a crueldade mental e psicológica aqui foi intensa –são descritas cenas absurdas e chocantes, como a dele marchando com um soldado às costas ameaçando atirar se parasse a marcha ou sendo conduzido ao barbeiro, mas em um clima de que estava sendo levado a fuzilamento. Há várias passagens de grande emoção, sendo uma delas a de quando Caetano examina fotos do planeta Terra, publicadas na Manchete e que viu na prisão, relativas a uma das primeiras expedições lunares. O filme foi exibido em Veneza e vale tanto para um conhecimento histórico, como para a própria reflexão, sobre passado, presente e futuro, naturalmente cabendo a cada um depositar o seu grau de confiabilidade nos fatos expostos e que podem ser resumidos na frase dita por Caetano em certo momento do documentário: “Quando você é preso, é preso para toda a vida”. 8,5