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O MERCADOR DE VENEZA

Realmente os textos de Shakespeare têm o dom da imortalidade e, assim, também da atualidade, além do grande charme da linguagem repleta de lirismo e de rebuscamentos do “vós”, que não raro causa grandes arrebatamentos nos personagens e emoção no espectador. Escrita há mais de quatro séculos, a obra na qual este filme de 2004 se baseou discute temas que ainda atormentam a civilização, como a discriminação racial, as desigualdades, a intolerância, as várias faces possível da lei (ou a relatividade de sua aplicação) e a habilidade para mostrá-las conforme a conveniência (e a sagacidade). Nesse sentido, o julgamento na Corte de Veneza, um dos grandes momentos do filme (na verdade seu ápice) é tão fascinante, quanto perverso e provoca em muitos momentos a perplexidade pela reflexão sobre qual é, afinal, o papel de Shylock ali: os diálogos saborosos e ágeis navegam em vários níveis e intensidades e são valiosos ao formularem a pergunta: é o judeu um ser egoísta e mau, um vilão, ou apenas alguém fazendo valer a justiça como a entende, exigindo o cumprimento da lei? O filme tem uma bela produção (fotografia, figurino) e ótimas performances do grande elenco: Jeremy Irons e Al Pacino, Lynn Collins (Raposa prateada em X-Men Origens)e Joseph Fiennes, entre outros. Em certos momentos alguém pode perguntar se o texto não será racista e a resposta certamente será negativa. Porque, por exemplo, o fato de mostrar a existência de criminosos não transforma um filme em um libelo a favor do crime, podendo, ao contrário, ser, ao contrário, justamente uma fonte de reflexão contra a criminalidade! O único ponto que aparentemente parece discrepar do todo, pela falta de verossimilhança, é o que envolve o advogado e o assistente, mas devemos então lembrar do estilo shakespeariano de ser, da comédia que reveste seus escritos, da ironia e do tom jocoso e brincalhão que assume, mesmo com riscos de enredo. E então, vistas algumas cenas sob a lente da comédia, tudo fica bem enquadrado, na Veneza liberal do século 16 (no caso do filme, de 1596). 8,7