MADAME BOVARY

Este é um filme de 1949, tendo havido – por incrível que pareça – duas versões anteriores. Mas esta é superior em muito a elas e inclusive soa ainda hoje como atual, o que demonstra sua força cinematográfica. Depois do Oscar em 1943 por A canção de Bernadette e os sucessos de Duelo ao sol (1946) e O retrato de Jennie (1948), Jennifer Jones interpreta mais um papel marcante em sua carreira, sendo certo que seis anos depois ainda faria o famoso Suplício de uma saudade, com William Holden. Além dela, atuam aqui Louis Jordan (ator francês que faria muitos filmes nos EUA), James Mason (que 13 anos depois “explodiria” com Lolita) e Van Heflin (ator prolífico no cinema e que 4 anos depois atuaria no consagrado Os brutos também amam), entre outros, contando uma história forte e sedimentada pelo tempo, escrita por Gustave Flaubert em 1857 (aos 36 anos), sendo ele um dos precursores do realismo. Interessante observar aqui que o romance de Flaubert costuma ser confundido com o de D. H. Lawrence, O amante de Lady Chatterley, que somente foi impresso mais de 70 anos depois, em 1928, em Florença, sendo alvo na época de uma sociedade que dizia ser defensora da moral e dos bons costumes, de tal modo que o livro de Lawrence somente foi liberado verdadeiramente no Reino Unido em 1960, o que gerou muitos comentários irônicos posteriores, entre os quais o de que “Os ingleses saíram da era vitoriana, mas a era vitoriana nunca saiu dos ingleses”. Mas a semelhança entre os dois livros é bastante restrita, embora algo significativa. O livro de Lawrence foi banido sob a acusação de escandaloso e contra a moral da época, narrando a história de uma moça que casou com alguém que voltou da guerra paralisado da cintura para baixo e que dela se desinteressou completamente, inclusive maltratando-a com sua indiferença e egoísmo. Esse aspecto relativo à liberdade da mulher, emocional, intelectual e sexual é, na verdade, o único ponto comum das duas obras. Até porque o livro de Flaubert foi um grande sucesso nas livrarias, inclusive pelo veredito do julgamento havido. O maior diferencial é que Madame Bovary é um romance escrito pelo famoso (e perfeccionista) poeta francês e narra fatos passados no interior da França mas na primeira metade do século 19, envolvendo os desejos e obsessão de uma moça sonhadora (fantasias a partir dos romances que lia), de se libertar da vida miserável e sem perspectivas que levava: o que se dá com um casamento de interesses (dela), sendo que a partir daí, ofuscada e deslumbrada pelas luzes da cidade grande e pela ostentação que a acolheu, foi ela se afastando cada vez mais da vida e do destino que parecia ter escolhido, inclusive renegando o próprio casamento e filha, em busca da referida idealização do amor. Quanto à aludida filha, há um momento em que a protagonista pede aos céus para que nasça um menino, pois então ficaria ele livre de toda a opressão social imposta à mulher e poderia viver sua vida com total liberdade. Esse fato é pungente e por si só esclarece tudo. A obra inicia com o julgamento do próprio livro – massacrado sob as acusações de imoralidade, pela Promotoria – e do escritor, que tenta explicar à Corte as motivações de sua personagem e também seu objetivo, quer era não de que ela fosse idolatrada pelos leitores como uma heroína, mas sim o de espelhar ao público fatos que ele reconhecia como verdadeiros e pungentes na sociedade da época. Podemos facilmente concluir, ao apreciar o filme, que na verdade ninguém tem culpa entre os diversos personagens, cada um agindo e reagindo dentro dos seus limites e de suas ambições, desse contexto derivando todas as consequências. Apesar disso, é certo que o adultério como causa da busca da felicidade e da liberdade era inaceitável pela sociedade da época, a despeito de os leitores de Flaubert reconhecerem nele um talento raro como ator, em razão de sua precisão de vocabulário, sintaxe e estrutura, o que inclusive o levou a receber elogios de mestres como Émile Zola, Guy de Maupassant e Victor Hugo. O filme tenta, com razoável sucesso, transpor tamanha riqueza para as telas e isso não é tarefa fácil, embora no caso desta produção permaneça ainda hoje com uma vitalidade impressionante. Após esta versão, outras duas (dentre as mais afamadas) foram feitas, em 1991 e 2014, com a personagem título sendo interpretada respectivamente por Isabelle Huppert (direção de Claude Chabrol) e Mia Wasikowska (direção de Sophie Barthes). 8,8